Papel de jornal


O que fazer quando a seta do Cupido nunca mais se consegue arrancar do alvo?
Quando nela nascem ramos de laranjeira como no nariz do Pinóquio? Quando a ponta da seta se parte lá dentro em mil bocados de ferro e se começa a espalhar pelo sangue, contaminando-o com o chumbo da tristeza que nos faz pesar a cabeça e os membros e nos tolhe os movimentos?
Já pensei em telefonar à minha cardiologista e perguntar-lhe se há solução para tal inflamação cardíaca, mas temo que a resposta seja negativa ou inconclusiva. Ela, que em menos de uma hora consegue enfiar um tubo pela veia cava e colocar um oclusor no coração de um paciente onde durante 20 anos existira um buraco, que salva vidas todos os dias consertando corações como quem lê o jornal e bebe a bica no café, não pode resolver este problema da seta encravada, porque quando sangramos, ninguém sangra connosco e a dor não se alivia com a partilha.

Os estóicos sofrem em silêncio. Os heróicos procuram novas missões. Os depressivos fecham-se em casa. Os agressivos batem na família. E os fortes lutam. Lutam todos os dias, um dia atrás do outro, como fazem os ex-_-toxicodependentes, os alcoólicos anónimos e os que não desejam mais do que alcançar a liberdade e a paz de espírito depois de terem sofrido o horror da dependência. Lutar sempre, ainda que seja ficando quieto e calado, porque estar quieto também pode ser uma acção. Lutar devagar quando as forças são poucas, preparando o corpo e o espírito para lutar sempre com mais força, mas tudo com calma, em paz, na certeza de que cada dia pode trazer-nos o que precisamos.

É muito difícil viver com uma seta encravada, daquelas tortas que o Cupido deixou esquecida. Cansa, mói, desgasta, não mata mas envelhece, dói sempre e por isso não se esquece.
Devia existir uma técnica de desencravar estas setas tal como existem detectores de minas e soldados especializados em desactiva-las. Mas as setas de Cupido nunca foram consideradas armas de guerra nem consta que o efeito que provocam possa dizimar uma nação. Os males do coração nunca foram considerados problemas de interesse nacional.
Estarei a ficar piegas? Talvez. É muito mais fácil escrever sobre sexo, mas esta semana não me apetece. Porque antes e depois do sexo está o coração, esse músculo extraordinário que funciona melhor do que qualquer motor, que bate sem parar, que não tem folgas, nem férias, nem subsídios, nem prémios, e que nunca foi sindicalizado. Esse órgão absolutamente extraordinário que, mesmo com válvulas deficientes, canais entupidos ou setas encravadas, continua a bater todos os dias a todas as horas no organismo dos que têm a sorte de poder continuar a viver. 

 Depois de ter passado algum tempo, aprendi que às vezes o melhor é deixar o coração em casa, embrulhado num papel de jornal, como o arroz, para não arrefecer..

1 comentário

  1. Cada vez mais me convenço que não é o coração que sofre...
    É o nossa parte psicológica!
    O cérebro... Comanda tudo... E com força de vontade, e muita luta, pode até comandar de quem gostamos...
    Bom, não será tão literal assim, mas o meu, já me ensinou que nem sempre o que gostamos é o que precisamos... O que nos faz bem!
    Custou? Claramente... Mas todos os dias o sol nasce, por isso, nada como seguir em frente!

    xoxo
    Lux

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